domingo, 17 de janeiro de 2016

Uma breve introdução ao Direito Constitucional V

1.      Tipos de Constituição
As constituições podem ser moles, duras, gasosas e líquidas. Brincadeira. Falando sério, existe uma boa quantidade de critérios para se classificar as constituições.
A)    Forma:
No critério formal, as constituições antes eram divididas em constituições escritas e constituições costumeiras ou consuetudinárias. As primeiras seriam leis editadas no papel, as segundas leis tão tradicionais para um povo que nem precisavam ser postas no papel para serem acatadas. O maior exemplo seria a Carta Magna de 1215 para os ingleses, que ainda seguem alguns de seus princípios até hoje.
Mas isso tudo caiu por terra recentemente. Primeiro porque alguém lembrou que a Carta Magna foi escrita em papel (os barões não eram bobos não, queriam acordo no papel, se lembra?), segundo porque o direito só se concentra em leis escritas (ou, como os juristas dizem, positivadas).
A nova classificação formal então passou a ser: constituições sintéticas e constituições dispersas. A sintética é aquela que diz tudo o que tem pra dizer de uma vez, enquanto a dispersa se vale de textos que foram escritos antes por outras pessoas de outras épocas. Um bom exemplo é o caso inglês. Lá eles aceitam a Carta de 1215, a de 1629, a de 1669 e por aí vai, chegando até a Constituição de 1947. Por quê? Eles são ingleses.
B)    Eficácia e efetividade:
Sabe qual a diferença entre eficácia e efetividade? A eficácia da norma é a validade dela. Pense numa lei que regulamenta os roubos de galinha até certa hora do dia. Digamos que até o meio dia todos os roubos de galinha serão aceitos como reivindicação de propriedade alheia em nome do direito fundamental de forrar o bucho. Primeiro, como se vai fiscalizar o roubo de galinha por todo o Brasil? Segundo, essa lei é realmente importante? Num Brasil como o atual disciplinar roubo de galinha deve vir na frente de leis sobre reforma agrária?
Desse ponto de vista essa lei não tem eficácia nenhuma. Ela não trata de uma questão importante para a sociedade atual e nem dá meios de se resolver o problema que se propõe a resolver. A Lei Seca, por outro lado, é uma norma que podemos dizer que tem uma eficácia, seja porque o problema das mortes no trânsito em decorrência do álcool tem crescido, seja porque ela organiza os meios de se combater esse mal (através da fiscalização e das penas).
Mas o Código de Trânsito já dizia antes que dirigir embriagado era crime. Por que foi preciso então se criar uma nova lei reafirmando isso? O Código de Trânsito não tinha o que chamamos de efetividade. A efetividade é a forma como a sociedade lida com a norma. Se a norma não é seguida, pouca adianta a lei ser eficaz.
Assim sendo, as constituições podem ser classificadas também de acordo com sua eficácia e sua efetividade:
Normativas – aquelas constituições que conseguem regular também a vida de sua sociedade que combina eficácia com efetividade;
Nominais – aquelas constituições que ainda não conquistaram uma boa efetividade, porque sua sociedade ainda precisa se transformar um bocado para chegar ao nível dos problemas por ela abordados ou para adotar o hábito de seguir as leis;
Semânticas – aquelas constituições que são feitas num contexto de péssima representatividade, onde os políticos são corruptos e a sociedade apática em relação à política, o que denota uma eficácia ruim e uma efetividade pior.
C)    Modificação do texto constitucional:
No que se refere à possibilidade de modificação existem três tipos de constituições: as flexíveis, na qual as leis constitucionais podem ser revistas ou acrescentadas do mesmo jeito que se faz uma lei comum; as semi-rígidas, que imputam uma série de condições para mexer no texto constitucional; e as rígidas, onde nada pode ser alterado.
Um bom exercício para você testar o que aprendeu aqui é pegar a Constituição Federal atual (que foi promulgada pelo Congresso brasileiro em outubro de 1988) e tentar classifica-la quanto à sua forma, eficácia/efetividade e possibilidade de modificação.

A primeira constituição brasileira veio só em 1824. Quer dizer que antes não havia nenhuma forma de regular os conflitos da sociedade brasileira? Antes disso, o Brasil estava sob os domínios de Portugal, sendo, portanto, subordinado às Ordenações Filipinas, um conjunto de leis baixadas desde o período da União Ibérica até o século XVIII.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Uma breve introdução ao Direito Constitucional IV

1.      Constituição
Esses quatro ou cinco elementos são, portanto, as condições necessárias para se ter um Estado. A Constituição é a certidão de nascimento do Estado. Ela cria o poder estatal e o delimita.
Na Inglaterra medieval o rei João Sem Terra (aquele cara que perseguia o Robin Hood, se lembra?) havia entrado num impasse. Ele havia vivido a maior parte de sua vida fora do seu país, não tinha recebido muitas posses dos seus pais e não era reconhecido como um soberano pelo seu povo. O que ele fez? Chamou os barões mais poderosos e populares da Inglaterra e negociou com eles a sua lealdade a ele. Os nobres disseram que aceitariam o seu governo se ele respeitasse alguns direitos que eles entendiam serem essenciais para eles. E para que esse compromisso não se perdesse na memória pediram que o acordo fosse sacramentado por escrito. Nascia assim a Carta Magna inglesa de 1215.
Por que estamos contando essa história? Simples. A Carta Magna foi o primeiro ancestral das constituições modernas, o que explica que esse termo tenha se tornado sinônimo de constituição nos séculos seguintes.
Mas o maior modelo de constituição atualmente seja aquele promulgado pelos franceses em 1790, onde se reconhecia a soberania popular, os direitos fundamentais e a divisão dos poderes, ou seja, ela materializou em lei tudo o que vinha sendo discutido por filósofos iluministas.
A propósito, sabe a diferença entre promulgar e outorgar uma constituição? Promulgar é quando uma constituição é fruto de uma decisão coletiva: um conjunto de políticos se reuniu e debateu o conteúdo a ser publicado, propondo ás vezes alterações ao projeto original. Outorgar é quando ela parte de uma vontade beeem mais restrita: a Constituição brasileira de 1969 foi editada pelos chefes das três Forças Armadas (Aeronáutica, Exército e Marinha).
Quem inventa a Constituição? Depende do contexto. Em 1969 foram três homens fardados, em 1988 fora mais de duzentos deputados civis. Nos dois casos esses personagens podem ser chamados de Poder Constituinte.
O Poder Constituinte não é regulado por lei. Entende-se que a Constituição cria a lei a ser aplicada. Se o Poder Constituinte é criado para criar a lei, então ele em tese é onipotente, onisciente e onipresente. Brincadeira, ele só é onipotente e ilimitado. Ou seja, três homens fardados podem ser Poder Constituinte, mas a chance deles fazerem leis não representativas é muito maior, o que torna esse fator algo não aconselhável para um país que precisa de um Estado democrático de Direito.
Agora, existem dois tipos de Poder Constituinte: o Poder Constituinte Originário (PCO) e o Poder Constituinte Reformador (PCR). Basta se ligar nos nomes e tudo faz sentido: o originário é aquele que produz a Constituição, o reformador é aquele que vez ou outra acrescenta algumas leis, retira outras. Afinal, as pessoas mudam e a lei precisa acompanhar isso.

No Código Penal, promulgado em 1942, o adultério era crime passível de prisão. Você consegue imaginar alguém sendo preso por trair o marido ou a esposa no Brasil de hoje? O artigo que criminalizava o adultério foi revogado do Código Penal recentemente.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Tchau, Alfredo

Na rodoviária o espaço-tempo toma uma forma estranha. Estava esperando meu ônibus quando uma senhora bem idosa puxa assunto e fala que precisa de qualquer jeito ir para São Francisco de Itabopoana.
-Ele tá demorando muito a chegar.
-Qual o horário dele?
-10h30.
-Senhora, já são 12h20.
-Ah, isso é o horário de verão, Alfredo (ela me chamava assim).
Depois de convencê-la a se informar com o pessoal da Macaense, ela volta mais disposta:
-É que ele sai de lá 10h30 e chega aqui 12h30.
De repente, ela encontra uma amiga:
-Tu acredita que eu e o meu neto (apontando para mim) estamos aqui esperando desde 8h?
Chega o ônibus para Niterói:
-Esse que vai pra Itabopoana?
-Não, esse é Niterói.
-Tem certeza, Alfredo?
-Tenho.
Chega o ônibus para Cabo Frio:
-Motorista, será que você pode desviar o caminho só um pouquinho? É que eu e o meu marido (apontando para mim) estamos muito atrasados.
Chega o ônibus para Itabopoana:
-Tchau, Alfredo. Mande lembranças ao papai.
-Tchau. Mando sim.
E assim eu fui irmão, marido e neto de uma senhora em menos de 50 minutos.

Uma breve introdução ao Direito Constitucional III

1.      Estado democrático de Direito
Para que o Estado não haja como um ente todo poderoso (como aconteceu com o nazismo, o fascismo, o stalinismo e outras experiências totalitárias europeias) é preciso que ele obedeça a certos critérios de conduta estipulados pela lei. Um Estado que regula as condutas dos indivíduos, mas que também é regulado por normas e leis é o que chamamos de Estado de Direito.
Para que isso aconteça é importante que os representantes do povo estejam realmente sintonizados com os interesses do povo. Para Rousseau a democracia moderna nasce da descentralização: cada comunidade se auto-administrando, como cidades-Estado. O liberalismo ajudou a conferir uma visão mais abrangente a essa forma de governo. Democracia passou a ser associada à República, forma de governo onde um grupo de pessoas escolhidas pelo povo governa um país e não um único sujeito (como na monarquia) ou um grupo de sujeitos bem restrito e não escolhido pelo povo (como na oligarquia).
Também é aconselhável dividir o poder em três instâncias: executivo, legislativo e judiciário. Por quê? Essa fórmula consagrada pelo filósofo Montesquieu ajuda a controlar a expansão de cada poder atuando como, na sua famosa expressão, num “sistema de freios e contrapesos”. Ao Legislativo cabe editar normas, ao Executivo aplica-las e administrar os interesses do povo e do governo, ao Judiciário caberia resolver os conflitos entre o povo e o governo (principalmente quando o governo age mal ou quando há intromissão de um setor dele em outro).
Outro fator incorporado à noção de Estado de Direito é a garantia dos direitos individuais. No Direito existem o que se considera direitos naturais ou fundamentais. São direitos tão essenciais que é quase impossível uma Constituição que se preze restringi-los. O direito a respirar oxigênio, por exemplo. É algo assegurado a ti pela natureza. O direito a liberdade também, desde que não se prejudique a vida em sociedade, como vimos anteriormente. O direito de ir e vir quando quiser também. Esse direito só é retirado do indivíduo quando ele incorre em alguma falta. É o que chamamos de reclusão ou detenção.

2.      Elementos constitutivos do Estado
O desenvolvimento histórico da sociedade ocidental levou muitos juristas e cientistas políticos a criarem uma matéria chamada Teoria Geral do Estado onde se procura definir o Estado para depois entender como ele deve ser regulado. Para os praticantes dessa disciplina o Estado só existe quando se tem um território, um povo, um governo e uma soberania.
O território é a porção de terra ocupada por certa comunidade. O povo é a união de habitantes que vivem nesse território. Para que esses habitantes se reconheçam como uma “grande família”, como uma “nação”, é preciso haver algum grau de identidade entre eles além do fato de habitarem o mesmo espaço. Falamos aqui de hábitos e práticas culturais. A vontade geral desse povo é o que chamamos de soberania. As autoridades públicas que tentam dar rumo a essa população são chamadas de governo.
Cada Estado tem sua soberania delimitada geograficamente, exatamente porque existem interesses e conflitos específicos para cada região. No plano internacional não existem Estados superiores aos outros. O que existem são Estados diferentes, todos iguais. A intervenção de um Estado no território e no povo do outro é encarado como um ato reprovável justamente por isso.
Contudo, existem os tratados internacionais que são acordos que por sua finalidade altruísta são respeitados em todos os países. A Declaração dos Direitos do Homem (1789) e todos os tratados internacionais que vieram depois dela (sobre o fim da escravidão, da pobreza, da violência contra a mulher, etc.) são aceitos pelo Brasil como normas válidas também.

Existem aqueles que dizem que se precisam não de quatro, mas de cinco elementos para se ter um Estado: território, povo, soberania, governo e finalidade. A finalidade seria o tal rumo que o governo deseja impor ao seu povo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A verdadeira dívida


O ator José Lewgoy participou de diversos filmes, desde as chanchadas da Vera Cruz nos anos 50 até a produção da retomada do cinema brasileiro na década de 1990. Foi o seu trabalho no Brasil que ajudou a ganhar fama internacional, sendo convidado para fazer filmes alemães, franceses e britânicos. Por isso muitos amigos perguntavam a ele:
-Lewgoy, você deve muito ao cinema brasileiro, né?
Porém, ele, sarcástico, corrigia:

-Não, meu caro. Eu devo muito por causa do cinema brasileiro.

Uma breve introdução ao Direito Constitucional II

1.      Soberania
E como fica a liberdade? Para Rousseau é possível estar inscrito numa ordem social e ainda assim ser livre. O nome dessa possibilidade seria a democracia, mas não a velha democracia grega (restrita socialmente a muitas pessoas), mas um regime bem diferente (restrito só espacialmente, a uma comunidade pequena).
Assim, teríamos uma liberdade negociada, onde nem o desprovido de poder é totalmente impotente, nem o detentor do poder é absoluto. Isso é importante para o Direito Constitucional porque essa é uma disciplina que trata justamente da ordenação dos poderes políticos do Estado, ou seja, é uma matéria que estuda até onde o Estado pode ir em sua função de administrar a vida social.
Recapitulando, poder e liberdade são instâncias próprias da convivência humana, tão necessárias e abrangentes que podem ser encontradas em qualquer canto do globo. Claro que cada cultura enxerga-as de modos diferenciados. Importa no momento a forma como a sociedade ocidental as viu através dos tempos porque continuamos integrados a essa sociedade ocidental.

2.      Estado
A solução de conflitos entre indivíduos com as eras foram resolvidas por autoridades, seja em tribos, famílias ou em formações maiores que conquistaram o título de nações. Na atual conjuntura a solução de conflitos mais amplos passou a ser uma responsabilidade do poder político. Quando alguém invade uma casa e rouba coisas é o Estado que julga o autor do crime. Quando alguém escraviza trabalhadores em sua fazenda é a autoridade pública que o prende (ou ao menos deveria ser – vide Ronaldo Caiado).
A principal característica dos Estados é o monopólio do uso da força física. Se você roubar uma casa ou escravizar alguém será pego por policiais e posto atrás das grades. A coerção atua no sentido de impedir novos conflitos e de resolver os já existentes, ou seja, ela tem uma capacidade preventiva e uma capacidade compositiva.
Resolver os problemas da sociedade é também conhecido na linguagem jurídica como composição de conflitos. O Direito, que estuda e atua na regulação da sociedade, reconhece que existem outras formas de composição de conflitos além do Estado: há a composição voluntária, onde as partes chegam a uma solução sozinhas por meio de negociações, e há a composição autoritária, onde uma das partes resolve o conflito aplicando a força.
Pensemos num cidadão que deixa o som do seu rádio no último volume perturbando o vizinho. Esse fato gera um conflito. O cidadão e o vizinho podem entrar em contato e chegar a um acordo: o volume pode ficar alto só até ás 22h que é quando o vizinho vai dormir. O vizinho pode ser, sem o cidadão saber, um bandidão que decide dar fim ao seu tormento diário matando o apreciador de música no último volume. No primeiro caso temos o exemplo de uma composição de conflitos voluntária e no segundo, autoritária.
Se o cidadão for teimoso e não acatar os pedidos do vizinho para que baixe o volume então o caso precisaria ser levado aos tribunais. Entramos então na seara da composição de conflitos legais. A lei acaba agindo como a responsável pelo fim do conflito. Como a lei é criada e aplicada pelo Estado, em última instância ele é o responsável.
Portanto, existem outras formas de composição, mas a do Estado é encarada como superior a todas, pois a soberania confere a ele legitimidade. A solução do acordo entre os vizinhos sobre o som pode não ser reconhecida por outro vizinho que considere o som ainda muito alto até às 22h. A solução do bandido pode ser vista como algo exagerado para a situação. Mas a solução dos tribunais é aquela que tem o maior número de aprovação, se bem que...

A superioridade da lei é uma das características do Estado porque ela implica no monopólio da coerção. Sem coerção as leis não conseguem ser interiorizadas pelas pessoas. Sem a ameaça de multa ou de prisão muito mais gente poderia estar matando e roubando por aí. Por isso, a superioridade da lei e a coercibilidade do Estado são elementos intrínsecos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Uma vez Formigão, sempre Formigão


O cantor Cyro Monteiro adorava comer. Não por acaso recebeu o apelido de Formigão. Conta-se que uma vez na casa de uma de suas madrinhas ele começou a passar mal. Repentinamente ficou pálido e reclamava de dores terríveis no estômago. Ele se escorou no corredor da casa esperando a mulher trazer algum remédio. O que ela pode preparar a tempo foi um chá de boldo.
-Toma aqui. Bebe tudo.

-Ué, mas tomar assim? Sem nada para acompanhar o gole?

Breve introdução ao Direito Constitucional I

INTRODUÇÃO AO DIREITO CONSTITUCIONAL
Baseado no Curso de Direito Constitucional (1999) de Paulo Napoleão Nogueira da Silva, Fundamentos de Direito Público (2002) de Carlos Ari Sundfeld, dentre outros livros.
1.      Poder
Comecemos pelo mais simples: O que é poder?
Só quando tentamos responder essa pergunta percebemos o quanto definir o poder não é algo simples, mas precisamos enfrentar esse desafio. Muitos já estudaram o poder e ofereceram as mais variadas interpretações dele: Durkheim pensa em um poder dividido por instancias da sociedade e do Estado, Weber faz uma tipologia da dominação (tradicional, carismática, impessoal, etc) e com isso admite que existam muitos “donos do poder”, enquanto Marx se centra no poder advindo das propriedades econômicas que no seu entendimento determinam outras formas de poder.
Em meio a tantas definições fiquemos com aquela oferecida pelo cientista político italiano Norberto Bobbio, admirado por dez em cada nove juristas:
“(...) estabelece que por ‘poder’ se deve entender uma relação entre dois sujeitos, dos quais o primeiro obtém do segundo um comportamento que, em caso contrário, não ocorreria” (Estado, Governo e Sociedade, Bobbio, p. 68).
Para Bobbio o poder faz parte de uma relação social, pois demanda mais de uma pessoa para ser exercido. Por mais banal que essa observação possa parecer chegamos à conclusão de que existem pessoas com poder e outras desprovidas dele. Aquele pobre coitado desprovido de poder é obrigado a fazer algo que não quer, ou seja, sua liberdade é limitada. Mas o que é liberdade mesmo?

2.      Liberdade
Eis outro conceitinho polissêmico. Para Kant a liberdade se exerce como juízo num mundo compartilhado com o Outro. Para Hannah Arendt a liberdade é ação e juízo, logo é uma responsabilidade que demanda viver em sociedade, o que significa que é uma faculdade política.
O jurista Hans Kelsen observou que a liberdade entrou na filosofia moderna sob um prisma negativo. Thomas Hobbes e John Locke enxergam na liberdade total anarquia, por isso dizem que a idade natural do homem, aquele tempo antes da construção do Estado, era um período obscuro onde os homens lutavam entre si por conta de seus instintos primais. O primeiro a enxergar os primeiros passos da humanidade como algo positivo foi Jean Jacques Rousseau que idealizou o bom selvagem, aquele homem que desconhecia a maldade por viver em permanente contato com a natureza. Para ele o mal seria um efeito colateral da vida em sociedade.
Rousseau é um nome importante para o Direito porque ele sugere que o Estado não é o único detentor do poder. Lembremos que Hobbes e Locke estavam escrevendo suas teses filosóficas em meio ao desenvolvimento do absolutismo pela Europa, numa época em que a prerrogativa do poder do rei começa a ser questionada. Afinal, porque o Rei manda em seus súditos? Se o poder é algo que surge na medida em que o homem vive em sociedade, qual é o critério para ser seu detentor? A justificativa até então era religiosa: o Rei era escolhido por Deus. A atuação de déspotas como Ivan, o Terrível na Rússia ajudaram a abalar um pouco desse fundo providencial das monarquias.
Hobbes e Locke dizem que o homem foi viver em sociedade para sobreviver melhor, mas que isso demandava um disciplinamento dos instintos selvagens, algo que seria exercido através do poder. Rousseau concorda que a vida em sociedade necessita de poder, mas alega que ele não precisa ser tirânico (como queria Hobbes e seu Leviatã). Para Rousseau, todo poder decorre de um acordo entre as duas partes, um contrato social. O Estado, por exemplo, detém o poder, mas não porque ele pode fazer isso, mas porque o povo reconhece que ele tem capacidade para isso e porque precisam que alguém exerça o poder.

Estamos falando aqui de outro conceito importante: soberania Antes ela residia no rei, o soberano, por conta de prerrogativas religiosas. Com Rousseau ela passa a residir na vontade geral do povo por conta das condições da associação civil. Em outras palavras, a soberania é o reconhecimento da origem do poder.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Pecados da Arte Contemporânea

Seja sincero: não te dá um aperto no coração ver esse fusca Wolkswagen 1966, todo lanternado, amassado como uma bola de papel?
Fusca esfera de Inchwan Noor, 2013.

Vozes da Amazônia - Resenha

BASTOS, Élide Rugai e PINTO, Renan Freitas (orgs.). Vozes da Amazônia: Investigação sobre o pensamento social brasileiro.
Vinicius Alves do Amaral
Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Amazonas.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007. 452p.

Élide Rugai Bastos, reconhecida estudiosa da Ciência Política, salienta em seu prefácio ao livro Vozes da Amazônia o peso de certos momentos históricos para o pensamento social brasileiro. Remete-se á 1930 e 1950, períodos em que o país desenvolve e, através de figuras como Gilberto Freyre ou Antônio Cândido, reflete sobre seu passado, presente e futuro. Mas a Amazônia também tem suas décadas-chave, como 1970 e 1980.
É durante esse período que as discussões sobre o desenvolvimento da Amazônia, á luz dos primeiros efeitos da Zona Franca e da pressão autoritária do regime militar, adquirem um sabor a mais com a consolidação do ambiente universitário na região. É durante esse período que surgem, após a crítica ao pensamento etnocêntrico do qual os estudos amazônicos sempre foram grandes devedores, as primeiras propostas de uma ciência eminentemente amazônica. É durante esse período, ainda, que Renan Freitas Pinto, doutor em Sociologia pela USP e atualmente professor aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Marilene Corrêa Silva Freitas, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP e professora do Departamento de Sociologia da UFAM, iniciam suas carreiras.
Cito-os porque além de figurarem no livro em questão são os maiores representantes desse esforço de constituição de um espaço acadêmico no Amazonas. Basta lembrar que o curso de Antropologia e os programas de pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia e Natureza e Cultura foram criados com sua ajuda. Muitos dos autores de Vozes da Amazônia são oriundos destes programas, representando bem a interdisciplinaridade e o comprometimento com os rumos da Amazônia hoje presentes em tais estudos.
O projeto Vozes da Amazônia, nascido inicialmente como um seminário organizado pela UFAM em 1996, tem o objetivo de contribuir para o estudo do pensamento social brasileiro com as reflexões produzidas á nível regional tanto ontem como hoje. Seguindo essa proposta podemos encontrar artigos que buscam refletir sobre certos temas presentes na tradição de pensamento local ou então oferecer uma releitura de autores consagrados.
Na primeira alternativa, os textos de Ricardo Ossame e Luiz Fernando Souza parecem ser emblemáticos por se deterem em temas tais como as cidades amazônicas ou então o discurso sobre a natureza, respectivamente. Ossame se ocupa dos relatos de alguns viajantes do século XIX, que também aparecem de forma tangencial no estudo de Souza. No entanto, o artigo do primeiro parece muito mais descritivo que reflexivo propriamente. Souza problematiza as diferentes visões da natureza amazônica (construídas e reconstruídas há séculos), encontrando um ponto essencial: a dominação implícita.
Não há como não enxergar uma aproximação com a grande obra do historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, A Amazônia e a Cobiça Internacional (1965). Por apresentar um longo histórico de ameaças estrangeiras á região, o livro encontrou acolhida nos mais diferentes meios e sua influência pode ser encontrada tanto no artigo de Souza como no de Luiz Carvalho. No entanto, é necessário não perder de vista que Souza analisa, com a ajuda de Foucault dentre outros, os discursos e que contempla também em sua crítica o projeto colonizador português, que para Reis representava um esforço civilizatório digno.
Há aqueles também que se comprometem a construir conteúdos programáticos, reportando-se á discussão epistemológica sobre uma ciência amazônica. É o caso de Luiz Carvalho que defende que há “(...) uma inconsistência epistemológica dos modelos teóricos disponíveis para formular o conhecimento e a compreensão ambiental amazônica e o da inadequabilidade programática de seus modelos desenvolvimentistas/ subdesenvolvimentistas” (p. 69). Após detida discussão filosófica, Carvalho procura fundar um novo projeto mental e social para a Amazônia que supere a divisão criada pela ciência moderna entre natureza e sociedade.
Quanto aos demais textos, há aqueles que empreendem releituras de clássicos ao analisarem um tema em específico de suas obras. Encontramos no artigo de Heloísa Lara Campos uma amostra desse esforço, quando a pesquisadora elenca como objeto de estudo as representações femininas dentro da obra do escritor paraense Dalcídio Jurandir. Extremamente pertinente o nexo que a autora estabelece entre ideias feministas e a experiência do viver amazônico que podiam estar presentes na criação literária de Jurandir.
Ainda elegendo a literatura como foco, Marco Aurélio Paiva Coelho realiza uma reflexão sobre os limites do modernismo paulista propagado pela Semana de Arte Moderna de 1922 ao abordar a carreira artística e algumas obras do também escritor paraense Abguar Bastos. O autor faz uma desconstrução desse artista geralmente considerado um dos porta-vozes do modernismo  no Norte, mas no sentido de apresentar a sua proposta diferenciada de modernismo. Assim sendo, o herói Bepe de seu livro representaria o oposto do herói sem caráter criado por Mário de Andrade, não por se filiar a um ideal romântico, mas por se aproximar do mito, uma das expressões amazônicas mais autênticas para Bastos. Mas o mito não está desligado da História, como percebemos nas maquinações feitas por um papagaio sobre um fonógrafo (p.364).
Lúcia Ferreira Puga e Odenei Ribeiro nos apresentam pioneiros raramente estudados no pensamento social na Amazônia. Estamos falando de André Araújo e Leandro Tocantins, respectivamente. Minuciosa análise faz Puga demonstrando a visão original de Araújo, uma mescla inesperada entre a questão social da Igreja Católica e a Escola de Sociologia de Chicago, e como o conceito de comunidade é central nela. Para ele, a modernidade destruiria os laços da comunidade, processo esse que pode ser evitado por duas entidades através de suas obras assistencialistas: o Estado e a Igreja Católica. Já Tocantins, como bem mostra Ribeiro, propõe uma modernização que não desconsidere alguns traços essenciais da cultura amazônica, tal como os saberes tradicionais ou a miscigenação.  É previsível a conclusão a que chega Ribeiro de que a obra de Tocantins “(...) cumpre no extremo Norte papel semelhante a que a de Gilberto Freyre cumpriu no cenário nacional” (p. 337).
Júlio Cesar Schweikckardt aponta a importância do sanitarista Alfredo da Matta como pensador amazônico, até então subsumido dentro da discussão regional. Sua presença no panteão de intelectuais locais se deve ás suas considerações decorrentes de sua percepção da saúde amazônica. Para o médico, como pregava o discurso sanitarista da virada do século XIX, os costumes garantiam a permanência das doenças sendo, portanto, necessário uma reeducação, organizada pelo Estado, com vistas á “civilizar” os povos amazônicos.
Importantes releituras empreendem Renan Freitas Pinto e Selda Vale Costa a partir de fontes como a imprensa e a correspondência. Pinto não discute as características intrínsecas de suas fontes – tais como os aspectos da escrita condicionados pelo suporte impresso diário – enquanto Costa se detém em uma breve discussão sobre a validade do estudo das cartas e algumas de suas vicissitudes.
Renan F. Pinto analisa os artigos de jornais de Djalma Batista como uma extensão das reflexões presentes em sua obra magna, Complexo da Amazônia (1977). Seu recorte temporal abrange a década de 1970, mas não considera os artigos como parte do processo criativo do livro, mas sim como um apêndice das questões já analisadas pelo pensador. É importante lembrar também que seu texto é introdutório, elencando temas para análises posteriores.
Selda Vale Costa, por sua vez, estuda a correspondência do etnólogo Nunes Pereira com quatro intelectuais locais: o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis, o antropólogo Curt Nimuendaju, o médico Djalma Batista e o diretor do Museu Goeldi Machado Coelho. O objetivo é claro: entender a rede de sociabilidades mantidas por estes intelectuais. O acervo de Nunes Pereira surpreenderia pela riqueza de dados contidos em algumas páginas, guardadas por ele e organizadas por seu secretário. “As epístolas, em síntese, revelam linguagens regionais, preocupações políticas com a região e querelas familiares. Cultura, ciência, política e afeto, eis os ingredientes mais comuns das missivas” (p. 280).
A pesquisadora Giselle Martins Venâncio, no livro Escrita de Si, Escrita da História (organizado por Ângela de Castro Gomes), chama a atenção para o papel das representações nas cartas. Ao analisar a amizade epistolar entre Monteiro Lobato e Oliveira Vianna desvincula-se das tradicionais representações imputadas a tais intelectuais e nos apresenta novas interpretações deles através de suas missivas (VENANCIO, 2004, p. 118). Foucault em estudo antológico situaria este precioso status das correspondências enquanto parte do contínuo exercício pessoal construção de si. Afinal, “é algo mais que um adestramento de si próprio pela escrita, por intermédio dos conselhos e opiniões que se dão ao outro: ela constitui uma certa maneira de cada um se manifestar a si próprio e aos outros” (FOUCAULT, 1992, p. 150).
A antropóloga Selda V. Costa enxerga essa dimensão representativa na troca de missivas: podemos ver a gradação de amizade através das expressões e da grafia, mas mais interessante ainda é ver os diferentes tipos de amizade que Pereira mantém com os referidos intelectuais. Somos apresentados á um Arthur Reis desiludido com Manaus e que oscila entre o tratamento reverencial e a crítica jocosa com seu interlocutor. Djalma Batista se coloca como aprendiz, mas incita seu mestre todo tempo a produzir mais. Sua fala é um tanto institucional, talvez por no momento estar presidindo a Academia Amazonense de Letras da qual Nunes ajudou a fundar. Nimuendaju possui um relacionamento mais formal com o etnólogo, ao contrário de Machado Coelho que o considera um grande irmão e ressente-se das poucas visitas do amigo.
Mais significativa é a representação que Pereira constrói de si. Aqui e acolá assume o perfil de libertino e pornográfico, mas por vezes não hesita em abusar da autoridade que a idade e os centros culturais lhe conferiam. Estas representações são de fundamental importância, pois nelas é perceptível a tensão social e cultural estabelecida entre seus autores. O diálogo, a troca de informações, não discrimina as rivalidades e conflitos que estes homens possuíam. Apesar de ser marcante, mais em uns que outros, o estigma de ser um intelectual amazônico persiste – como é o caso de Coelho que se ressente do amigo, talvez por ter fincado raízes na capital federal, ou então de Reis que recusa qualquer tentativa de ação cultural em sua terra natal.
As considerações finais de Selda Costa são exemplares por não esgotarem as interpretações sobre o provincianismo intelectual amazônico: “Talvez se trate mais de visualizar a província como espaço cultural e evidenciar que o insulamento, o sentir-se só, abandonados pelo governo federal, pelo Brasil, essa temática-lamento constante, talvez seja mais uma armadilha (...)” (p. 306) ou seja, será que o “atraso cultural” da Amazonas não passa de um discurso para reduzir questões próprias do campo artístico e exigir uma intervenção estatal no sentido de subsidiar estes artistas, por exemplo? E esse isolamento talvez seja a força motriz do pensamento e da arte amazônica, sua fonte maior de vigor. Afinal, “esse ilhamento, real ou idealizado, cria as condições para uma migração para dentro de si mesmos, certo ensimesmamento, que cria e recria, elabora e inventa uma ideologia da amazonidade” (p. 306).
Em suma, como afirmamos no início, há uma proposta que subjaz á todos estes artigos tão desiguais entre si (seja no estilo de escrita ou na densidade teórica e metodológica) que é a crítica á modernidade que se impunha já nos anos 70 e 80 e que hoje, ao invés de arrefecer, agudizou-se. A grande riqueza deste livro é não focar apenas no ataque ao projeto modernizador implantado, mas sugerir novos caminhos através inclusive da tradição de pensamento local. A releitura de autores consagrados também aponta uma dimensão necessária do diálogo, muito diferente da atitude que permeou em outros tempos de desqualificação de suas obras através de taxações como “reacionário” ou “conservador”. Seja como for, Vozes da Amazônia é um importante documento sobre o estado atual do pensamento social amazônico.
Referências:
VENANCIO, Giselle Martins. Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada. In: GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2004.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.