domingo, 4 de agosto de 2013

Ao pé do ouvido

Cem por cento limpo eu não garanto (posso ver Anísio falando), até porque não existe isso de cem por cento limpo. Não era justificativa pra trabalho mal feito - quem conhecia o velho sabia disso -, mas uma reflexão constante em sua vida. Aí ele te chamava no canto e perguntava se já tinha ouvido falar de micróbios. Claro que já!Quem nunca ouviu falar? Pense nesse amontoado de bichinho vivendo por aí, morando em você, na sua comida. Só tem uma coisa que mata micróbio e é quentura. Por isso quando me pedem pra deixar o clube tinindo de limpo eu digo que só tacando fogo nisso tudo.
A cada visita ao clube, Seu Anísio sempre me apresentava alguma observação sua como uma descoberta secreta. Abaixava o tom da voz, se recostava na parede, olhava pros lados. Nunca entendi o por quê até que certa sexta feira, chegando o fim do expediente, esbarrei no velho. Estava indo pra casa. Quase irreconhecível sem suas botas, o rodo e a mangueira. O boné já fazia parte de sua anatomia, bem como o bigodão, há trinta anos tão preto quanto as asas da graúna.
Enfim, enquanto passava pelo portão encontrei ele vindo. Com aquele ar de surpresa. Seu Doutor! Só na batalha? Perguntei da mulher e dos três filhos. Veja só, já tinha netinhos! Devia ser um avô daqueles que babam os netos até não poder mais. Então o tom da conversa muda: dá uma boa olhada ao redor para ver se há alguém escutando a conversa e aí, quando se sente seguro, inicia sua teoria sobre o conflito de gerações.
Sabe, qual o problema dos novos? Acham que não havia nada antes deles. E o problema dos velhos, sabe qual é? Acham que não tem nada de novo pra aprender. Mas os dois estão no mesmo barco. Eles precisam um do outro. Mais cedo ou mais tarde eles percebem isso. Eles tem de perceber isso. Senão as coisas não mudam.
Concordei. Mas resolvi perguntar porque de tanto mistério. Afinal, não se trata de nenhum segredo de estado. O senhor devia falar o que pensa pra mais gente, lembro de ter dito isso. Meu filho, não tem coisa mais preciosa e perigosa que informação. Assange e Snowden que o digam. Longe de desestabilizar o governo americano, Seu Anísio apenas quebrou todo o Clube Náutico quando a investigação da Polícia Federal sobre corrupção chegou ao presidente da instituição. Dr. Maurício Dias jogava todas as promissórias, bilhetes e recados no lixo. Esqueceu de que o que era lixo pra ele, era informação vital para um velho zelador de olho aberto.

Vinte e quatro horas

VINTE E QUATRO HORAS
Vinicius Alves do Amaral

A noite passava por nós. Com a cara emburrada, devo acrescentar. Também não era pra menos: por mais de três horas só fazíamos discutir. Contudo, todos sentados, encarando argumentos com os olhos vidrados enquanto a cerveja esquentava. E tudo por causa de uma mosca.
Explico: Pouco antes de chegar ao bar do fim da esquina tinha lido um ensaio do Enrique Vila-Matas[1]. Conheces? Enfim, era um ensaio sobre uma escritora para qual  se escreve para ver uma mosca morrer. Como de costume, apresentei minha última leitura com ironia e Nagle aparou meu sarcasmo com suas colocações.
Concordava com ela por causa disso, disso e isso. O gole afoito que dei apenas alimentou minha sanha demolidora. Quer dizer que você escreve para matar moscas? E eu achando esses anos todos que fumacê e inseticida resolvia esse problema.
Ávila sentiu os raios se formarem na retina de Nagle e dirigiu-se ao balcão onde achou alguns amigos instantâneos.  Sempre respeitoso, meu colega de debate de mesa de bar alegou que não tinha entendido a verdadeira essência da frase da nobre colega escritora: o que ela queria dizer é que a escrita serve para captar momentos da vida. Questionei se a morte de uma mosca era um momento adequado.
-Justamente aí que está a questão: o que é um movimento adequado? Quem pode dizer isso? Você? Eu? Qualquer um pode dizer. A literatura é extremamente livre para firmar qualquer fato, por mais banal que nos pareça, como singular. Aliás, é essa capacidade extraordinária dela que permite que reaprendemos a prosa do mundo.
Sempre me incomodou o jeito como Nagle fala: como se estivesse ditando, como falasse para ser escrito. Evocava sempre Proust, Dotoievsky, Lispector, Pessoa. Pra quê esse exército? Mas para mim a questão sempre foi outra. Para mim, singularizar o banal não bastava por si só. Para mim, brincar com palavras não define essa estranha arte de escrever. Para mim, literatura sempre foi autoconhecimento. Escrevemos para sermos lidos, não para aprendermos a ler.
-Mas quem disse que não se trata de autoconhecimento também? Quando você transforma a morte da mosca em uma tragédia você está apresentando-se a si e aos outros, mas de forma muito mais sutil. Vamos fazer esse exercício. Descreva a morte da mosca.
-Nagle, por que me obriga a essas coisas? Maior mico...
Enfim, depois de insistir por longos dois minutos aceitei o desafio.  Revolvi meus neurônios por alguns instantes e saiu mais ou menos isso:
-Cansada sobre a parede, pensei qual seria a próxima parada – a lixeira ou a pilha de pratos sujos – quando fui surpreendida pelo peso da morte. Esmigalhada, só pude ver vagamente seu contorno: retangular e vazada por pequenos furos...
-Viu? A sua morte da mosca é bem a sua cara. Descritiva, meio cínica...
Como você mataria a mosca, ó guru das letras?
-Vejamos... Nagle pensou, saiu do nosso mundo e só voltou com uma resposta.
Asas pesadas, olhos cansados.
O mundo a me esmagar.
Ao terminar seguiu um breve mais profundo silêncio na rua – um desses momentos bizarros em que o barulho tira uma folga – e Nagle, resoluto após seu ponto final, proferiu de forma mística: Preciso escrever isso!
Enquanto anotava no guardanapo os trechos futuros de sua morte da mosca, perguntei qual seria o título dessa “obra-prima”. Vinte e quatro horas, respondeu.



[1] Trata-se do ensaio Escreve-se para olhar como morre uma mosca de Enrique Vila-Matas sobre a escritora francesa Marguerite Duras.